"Demorei-me a contemplá-las, sob aquele céu clemente, a ver as borboletas esvoaçando por entre urze e as compânulas, a ouvir a brisa suave soprando através da relva e a pensar como poderia alguém imaginar, sequer, sonos agitados sobre aquela terra."
Emily Brontë

5 de junho de 2014

Voltei à casa. Com esta, são duas as vezes que aqui estive depois. E o que mais me surpreende é o pouco que este local muda de cada vez que o vejo. Faz-me lembrar o quão pequenos somos e o pouco tempo no mundo que para nós, é uma vida. Faz pouco mais de um ano desde a primeira vez aqui. As gavetas arrumadas, os maus sentimentos fechados à chave, e para nós as três só risos e cachecóis amarelos, e muita felicidade. As memórias tornam-se embaciadas, quase impossíveis de reviver. Espera. É incrível. Ainda ouço a flauta ao longe, tal como dantes. A pele do músico envelheceu, noto. Mas os seus dedos têm a mesma vivacidade de sempre, e não evito sorrir enquanto o vento, este vento tão familiar, me sopra na cara. Talvez consiga soprar mais forte, e traga uma terra do norte para aqui. Ou então talvez me consiga levar para lá, se ficar mais leve e conseguir que as minhas tristezas se transformem em água. Consigo ver o nosso caminho a desaparecer, ramos de árvores que foram arrastadas cobrem-no e só eu sei que houve um dia uma estrada. Aqui, sozinha, sinto uma nostalgia alarmante, quase sufocante, que me pica os olhos. É uma agonia que permanece, sempre num ponto sereno, mas a sua duração enlouquece-me. Ao me sentar sozinha, concentro a minha atenção na casa onde fomos tão felizes. Quantas pessoas poderiam levar, e levaram-na a ela. Quase que me rio da injustiça que cresce dentro de mim ao refletir na crueldade da vida que leva para longe aqueles que pertencem perto e mantém junto aqueles que deviam ir. As experiências que podiam ser vividas, as histórias que podiam ser contadas, tudo o que ficou por fazer.
Daria tudo para ali voltar, não só, com elas, e viver tudo outra vez. Tudo de novo, e voltar a sentir-me naquela paz, livre de pesos e de amarguras. Passam horas, e eu olho para o céu, para as árvores, para os pássaros, e faz-se tarde. O pastor parou de tocar e foi, provavelmente para casa. Também ele? O que eu daria para voltar, para o abraçar e agradecer as horas que me deu música, que me acalmou e alimentou a minha alegria. Queria que visse o meu sorriso, a minha felicidade e a calma que me transmitiu, juntamente com este lugar. Toco na relva e os meus dedos escrevem uma melodia de que me lembro. E sei que, não importa quantas vezes aqui volte, me vou sentir assim, um misto de alegria e tristeza, como se voltasse atrás no tempo.

7 de outubro de 2013

  Naquele dia ele contou-me o desejo de descer a falésia e pintar as gaivotas pousadas na água. A pintura estava quase acabada, dizia-me ele, bastava descer um pouco até estar à altura do sol antes de este se deitar no oceano. Olhou-me com os seus olhos, leitosos da idade, castanhos e cansados de focar a vista.
  Hesitei, mas vi a forma como se tinha dedicado àquela obra, e compreendi-o. A ideia de não voltar a ser olhada com tanto carinho percorreu-me e assombrou-me, pelo que disse que sim, num sopro de voz. Sorriu para mim e eu suspirei de satisfação. Acompanhei-o até à borda com algum custo, e vi-o a contemplar as aves, algo apressado. Comecei a descer com ele, e senti a sua respiração alterada da emoção, ao mesmo tempo que via o pedaço de papel a querer escapar por debaixo do seu braço. 
  Finalmente, pousei o pé num sítio que me pareceu seguro, e olhei em frente. A vista cortou-me a respiração e o meu coração tocou-se de tal modo que me vieram as lágrimas aos olhos. 
  Agora que via de mais perto, conseguia ver a água lá em baixo a criar espuma nas ondas, uma e outra vez. Os pedacinhos de céu refletidos na água confundiam-se com a forma das nuvens. E os sons, a espuma e as gaivotas harmonizavam de um modo nítido, e ao mesmo tempo surreal. 
Sequei as lágrimas com as mãos, envergonhada com a minha sensibilidade perante aquilo, mas feliz.
  Olhei para o lado e pude ver a folha desenhada a escapar do braço dele, e vi-o enclinar-se para a apanhar.
O momento demorou.. e pude vê-lo cair. Os seus olhos a perderem a expressão, a folha deixando-se ondular ao vento, enquanto as suas mãos ficavam vazias. Enquanto os meus gritos se tornavam mudos naquela imensidão, eu vi-o. 
  E lembro-me de pensar, louca de dor perante a cena que me cortou o coração.. Que lugar tão cruel e lindo para se ter um último olhar sobre o mundo.

29 de junho de 2013



Num misto de saudade e tristeza, voltei à casa rodeada de longos campos. A minha curiosidade moveu-me, e acabou por me vencer. Os fragmentos dos momentos que ali passara habitavam agora na minha memória,
e entraram pela porta da tristeza. 
  Passara apenas um ano, e mesmo assim, o meu coração sentia-se de um modo totalmente diferente, e na minha mente, os pensamentos que dantes me cobriam, dispersaram-se e não voltaram, sem que eu me apercebesse.
  O lugar estava igual, no ar ouvia até as conversas trocadas e os sorrisos que estendemos naqueles dias, como se tivessem sido ditas há pouco.
  Reparei nas flores, nas cores vivas, e no frio que avermelhava a minha cara.
  Os caminhos pelos trigais estavam intactos, tal qual como os haviamos deixado.
  Senti-me a desfalecer ao reparar no pedaço tão grande que faltava na minha alegria.
  A flauta ao longe tocava sem cessar, sem falhar uma nota sequer. 
  Subitamente, senti uma presença que me trouxe um odor característico. Voltei-me, mas não estava ninguém. Ouvi uma voz doce e meiga a aconhegar-me e a afagar-me dizendo que tudo estava tão bem como dantes, até eu. Vi o pastor, a tocar a sua flauta, bem afastado. Passavam os meses, os anos, as épocas de frio, de calor, as minhas alegrias e melancolias, e o pastor ali continuava, apresentando uma grande fidelidade à sua forma de viver, e com um sorriso sacudia o polén do chapéu. 
  Começou a chover, e eu permaneci no mesmo sítio, enquanto a voz me trazia um grande chapéu de chuva, e me abrigava. Dei-lhe a mão, e ficámos, até a chuva parar.
  Olhei para o céu. Azul, sem nuvens, sempre calmo, sempre sereno. Por detrás das tempestades, sempre claro.
  Assim como eu seria, enquanto quisesse.

12 de março de 2013



 Sofre, eu bem vejo, a perda de alguém. A falta de brilho e a palidez do seu rosto deixam a descoberto aquilo que os lábios não contam. Encontrou o seu refugio na pintura, e senta-se aqui, onde as suas súplicas são socorridas.
Estamos ao lado do museu, há um castelo junto às muralhas que protegiam a vila. O terreno desprotegido é vasto como o céu, e as suas curvas tão bem desenhadas como as ondas. Naquele pano escuro o sol deita-se. A luz escapa pelo meio das vidraças do céu. O espelho lacrimeja num vapor alaranjado.
 Foco o meu olhar na tela e o meu coração aquece. O seu sobrolho está carregado, mas na verdade ele está pasmado tal como eu. Sei que sempre que passam, as gaivotas que voam lhe puxam lágrimas dos olhos. A sua boca pode estar séria, mas consigo ver os seus olhos a rasgarem-se num sorriso. Vejo-os a derreterem-se agora de emoção. Esquece a tristeza que o assombra e concentra-se no toque da minha mão amiga a roçar no seu ombro. O senhor descasca uma tangerina e alguns pingos de sumo molham a sua mão. Ela reluz ao sol. Estende-me metade e eu aceito, sorrindo. Reparo que retrata um bocadinho do pôr-do-sol de cada dia, naquele sítio, porque a pintura não está acabada.
 Não há angustias que se igualem à ausência do cheiro da areia e da luz do sol poente. Trauteio uma canção que o faz ressaltar, e pela primeira vez vejo-o rir. As tintas depressa secam com a aragem quente. Levanta a areia da longa manta macia, que se estende até ao horizonte e salga o ar.






24 de fevereiro de 2013



   O jardim floria em rosas vermelhas e em verdes àrvores com frutos sumarentos. O sol subia e intenso ficava, mas uma brisa soprava e o calor alastrava-se. No inverno a nervura das flores gelava, e o branco cristalino das suas pétalas refletia-se em todo o redor. Neve caía e cobria a relva, como flocos de geada suaves, calmos e frios. Uma cortina de fadas pairava no céu e o jardim exibia uma beleza que nas minhas lágrimas tocava e elas escorregavam pelos troncos das árvores molhadas.
    Um pastor compunha poesia e cantava-a, e a sua voz quente derretia o vento. Lia, cantarolava e em pedacinhos de orvalho escrevia. Palavras choradas ecoavam e embalavam as flores ao amanhecer. Sussurava para as formigas formas esbeltas de poesia. Esse jardim palacial adornado de preciosas jóias era enfeitiçado pelos poemas cuidadosamente falados pelo pastor.
     "Na tanta solidão em que vivo, só a vós dedico o meu amor, a minha atenção", dizia o poeta.
E todo o jardim parecia responder: "enquanto recitas, a tua voz é como água que rega este solo seco e que torna os nossos murchos corações vivos e belos."
      No outono as folhas adquiriam um tom castanho amarelado mas não caíam. Agarrando-se firmemente aos ramos, permaneciam no alto das árvores, para o pastor inspirar.






17 de fevereiro de 2013


Pingos de água salpicam o lago. Estava sereno. Agora o meu rosto desvanece-se e perde a nitidez nos circulos que se formam e o deformam.
    Uma mão cremosa e macia aperta fortemente o meu coração e dele se despede, sem se comover com clara angustia que me esbranquiçara a íris. Deita-se e acena num triste adeus que envolve os meus olhos.
    O lago sorri-me enquanto a minha boca prova uma transparência doce mas perturbante. Sinto um bafejo gelado nos meus cabelos que esfria as minhas orelhas e repete que vai embora. Deixa-se desfalecer na água com um sorriso dissimulado. Numa ação subdita lanço-me também mas não consigo tocar em nada.
   A água calma dança no meu corpo num movimento angustiante. O meu rosto cobre-se de sonolência e sinto-me débil. A minha voz já não ecoa na àgua. A mão acena uma última vez antes de desaparecer no penhasco, e os seus lábios brotam uma expiração longa, um pedido de perdão.

1 de fevereiro de 2013



Ela tinha um pescoço esguio. Com os olhos escuros observava as montanhas solitárias contruídas á sua frente. Eram belíssimas, altíssimas, e avassalava-me a repulsa com que a rapariga de longos cabelos ruivos as olhava.
As árvores agitavam-se e as folhas arrancavam-me suspiros compridos quando ela tocava no violino.
Os olhos tornavam-se turvos, a íris desaparecia e os seus braços moviam-se numa agonia por dentro dela que se controcia e retorcia.
A terra estremecia ao silêncio dos seus lábios finos. As suas mãos arrefeciam a fria parede de mármore quando a tocavam.
Ela dorme agora, jaze na sua cama e respira fundo, num sopro brando. O violino está pousado junto a ela, seduzindo com as suas cordas. Vejo as sombras refletidas no rosto dela e lembro o tempo em que a claridade do sol resplandescia no seu olhar. O mar luzidia.
Ao longe ouço a cascata gotejar, pingar, a água a cair, por entre pedras e rochedos. As montanhas roubaram à casa a luz que tinha.
A sua pele é clarinha e até macia nas maçãs do rosto. Reparo nas suas pálperas fechadas, nos seus lábios finos. Estou na escuridão deste quarto, junto a si. A chuva começa agora a cair lá fora e molha as árvores, que cantam num triste assobio. E eu permaneço aqui, isolando-a, protejendo-a do mundo exterior e envolvendo-a no calor dos meus braços.

25 de janeiro de 2013




Olhei para o seu rosto, sujo do carvão, riqueza do maior cume que atravessámos. Os seus olhos eram vermelhos, ardentes e expressivos. As suas mãos compridas e os braços robustos. O seu espírito lembra-me uma cavalariça desimpedida, cavalos correndo pelo mato com os corações batendo fortemente. Luxuosos cavalos a correr livres, intocáveis, inabaláveis. Os seus lábios são estrelas marinhas, esvoaçam belamente pelas perigosas ondas. O seu cabelo é selvagem como os animais que enfrenta, é um valente guerreiro que corre sozinho enfrentando a multidão.
Durante tempos infindáveis vimos o céu desabrochar com o amanhecer. O nosso consolo era o cheiro do céu rosado das dormidas ao relento. Através de caminhos sombrios percorremos montanhas mortas. As nossas mãos estavam já sujas de terra e as nossas mentes perturbadas e loucamente controladas pelo nosso desejo de vitória. Estavam também queimadas das fogueiras que acendemos pelo caminho. As chamas ercarlate escaldavam-nos e consumiam-nos.
Vivemos na penumbra da noite, e até a madrugada me magoava o coração, até que deixei de o sentir. O nosso espírito endureceu-se e a cada dia perdiamos um fio de esperança do cobertor que nos aquecia, quando as gélidas manhãs se tentavam apoderar dos nossos corpos. O calor que tínhamos perdia-se pouco a pouco e os nossos olhos iludiam-se com novas miragens de cursos de água cristalina. Foram incontáveis os momentos em que desejámos não ter embarcado na aventura que nos aniquilaria com a sua fortaleza, nos enforcaria com a sua energia e solidez.
As nossas pernas esmoreciam e a cada passo entregávamo-nos a um mundo onde os nossos esforços de nada valeriam.
Pelo caminho o coração dele sumiu. A sua alma foi apagada como uma vela soprada pelo vento.
Ao acordar da madrugada cheguei ao meu destino. Uma luz intensa contou que estava perto. Caminhei e lá cheguei.
Toquei e chorei. Uma fadiga triunfante preencheu-me, deitei-me na terra e aclamei aos céus.
Sorri, e já sem forças, exalei o meu último suspiro.

18 de janeiro de 2013



Há um rio separado da terra por uma pequena falésia. A humidade rega a paisagem, tornando-a fresca e densa. Aos olhos de quem observa de longe, este local resume-se a um banal ponto verde escuro. Junto ao percipício, há um moinho. O vento faz a élice desse moinho girar violentamente, descontroladamente. Uma brisa forte ecoa no ar, mas não há vivalma presente para a respirar.
Mas nem sempre foi assim.
Vivia naquela casa em cima do monte um homem feliz. Bem, ele era um homem feliz. Tinha esposa e quatro filhos pequenos. Viviam do pão que o moinho produzia. Costumavam comentar entre si que aquele lugar estava amaldiçoado. Quando havia farinha, não havia vento. Quando havia vento, não havia farinha.
Mas nas alturas em que isso não acontecia, viviam bem, aproveitando o pão e é claro, vendendo o que podessem para comprar outros produtos.
Na verdade, o senhor era um pouco egoísta. Apegado aos seus pertences. Não gostava de dar.
Um dia um viajante pediu-lhes auxílio durante uma noite, visto não ter onde dormir. Contou-lhes que viajava pelo país à procura do seu próprio rumo. Por alguma razão, o dono da casa não o deixou entrar. Sempre lhe chateara gente que não gostava de trabalhar.
Não se comoveu perante o aspeto miserável do visitante.
Nos dias seguintes, não houve farinha, mas muito vento, tanto que o telhado da casa ficou destruído.
A mulher concluiu com isto que o marido, devido á sua avareza, tinha sido castigado pela natureza.
Os dias assim continuaram, e a família vivia cada vez pior. Até que a mulher, não atendendo às súplicas do marido, saiu de casa para começar uma nova vida, levando consigo os filhos.
É impossível de descrever a angústia que enevoou a alma do abandonado a partir desse dia. O sopro do vento era tão forte que o arrancaria da terra, se o seu coração não estivesse tão pesado. Estava pesado, sim, como um grande pedregulho, e assim ficou.
Um dia, um pobre bateu á porta de sua casa. Relembrando o acontecido que lhe trouxera tantas desgraças, encheu o pedinte de atenções. A partir daí, todo o pouco rendimento que obtinha dava.
Viveu nessa extrema pobreza durante catorze anos. Todos os dias recebia pessoas em sua casa. A pouco e pouco, deixaram de ser pobres, e visitas de oportunistas passaram a ser frequentes. O homem sabia disso, mas lembrava-se da mulher e dos filhos, os seus olhos começavam a doer e ele abria a porta, incapaz de negar simpatia a quem fosse.
Um dia, ele sumiu. Adormeceu junto ao percipício do moinho e não mais acordou.
Hoje, estou aqui. Fui casada com aquele homem, em tempos. Fui a sua mulher. Estou a respirar o ar jovem e puro deste lugar que tão bem conheço. A relva está molhada, as élices do moinho giram. Ao longe as janelas da minha antiga casa estão abertas, as cortinas navegam na brisa. Sinto frio nos ouvidos. Aliás, sinto-me fria. Estou aqui, tal como o moinho, a relva e a àgua do rio. Oh, a minha vida mudou tanto. Uma mão quente toca-me no ombro. Sorrio.
Felizmente não estou sozinha.

20 de dezembro de 2012


Numa época dificil da minha vida, eu vivi num condomínio agradável. O sol aquecia a minha casa de manhã e durante o dia mantinha-se quente. O único ponto que não me agradava era a paisagem. Em frente à minha casa estava um prédio muito alto, que me impedia de ver o céu.
No entanto, uma senhora idosa via uma vista encantadora todos os dias ao acordar, dizia-me. Era invejada pela vizinhança. Passava os dias num café, e eu juntava-me a ela aos fim-de-semana.
Era uma pessoa interessante. Segunda-feira vestia um vestido vermelho, terça-feira um vestido verde, e assim sucessivamente. Ao domingo retomava a rotina. Explicou-me que o dia-a-dia é assim. Repete-se, mas todos os dias acontece algo de diferente, como a vida do lado de fora das paredes da sua casa. A senhora gostava de observar a bela avenida que se estendia diante dela. Os donos passeando os seus cães de manhã, o sol iluminando o dia, as pessoas atarefadas.
Gostava especialmente do Natal, quando via famílias, após um longo dia, sentarem-se em frente das suas janelas beberricando chávenas de chocolate quente. Observava o mundo do qual antigamente fizera parte. Contou-me um dia que a sua vida monótona preenchia-se com a agitação da linda avenida. E devo confessar que a minha também.
Nunca visitara a casa da minha amiga, realmente não conhecia o local de que ela falava.
Mas pouco me importei, aquelas conversas sabiam-me tão bem. Ela e os seus relatos foram, sem quaquer dúvida, ajudas preciosas na recuperação da minha alegria.

Um dia, encontrei-a pela última vez no café habitual. Contou-me que iria mudar-se rapidamente para casa da sua filha, no Brasil."Quando acordei, a avenida estava encantadora. Tão fresca da chuva que caiu ontem. Será que soube que me vou embora e se pôs bonita para mim?" brincou. Despedi-me da minha amiga, que me tinha encantado e preenchido de alegria durante aquele tempo.
Pouco depois, casa foi comprada, e os vizinhos acorreram logo, tal como eu, para ver a linda avenida, com cães, sol, pessoas e chávenas de chocolate. Com os olhos a brilhar de expectativa, espreitei pelos cortinados da sala.

Só vi um prédio muito alto.

baseado no conto "A Janela"

25 de novembro de 2012

Enquanto as três passeávamos olhei para trás, para a casa de onde tínhamos saído e o caminho até aí percorrido. O sol estava prestes a adormecer e a submeter-se perante os nossos olhos. Não havia qualquer estrada ou direção.
O céu parecia uma pintura tão bela que me emocionou.
Fomos um só naquele passeio. Cada movimento me aquecia. Campos enormes, libertos e frescos. Os nossos rostos estavam avermelhados do vento fresco que nos tocava na cara.
As tristezas arrumaram-se em gavetas quentes e sossegadas. Risos compunham a melodia mais bonita que já ouvira na vida. E essa melodia continua enchendo os três corações, certamente.
A casinha já estava pequena, notei. Caminhámos, indo para além da fronteira. A terra percorrera um longo caminho por dentrás dos nossos pés.

14 de novembro de 2012

Reparara pouco naquele menino que viajava sempre no mesmo autocarro que eu. Quando subia cumprimentava-me e descia no hospital mais próximo. Tinha o aspeto de um menino bem cuidado, de boa família, modos agradáveis, e embora fosse pequenino, tinha uma expressão madura. Contudo, sem perder o olhar de inocência e alegria.
Quando descia do autocarro e este se afastava, observava-o, de sorriso no rosto. Todos os passageiros habituais o conheciam. Era a mãe doente que ía visitar - segredou-me uma senhora que habitualmente saia na última paragem da carreira para ir buscar o marido ao lar. E o menino continuava, e confesso que dava gosto, após um dia atarefado, observar aquele rapaz com um ramo de flores na mão para entregar à mãe.
Um dia, deixou de aparecer. A tal senhora contou-me, pesarosa, que a mãe falecera.
Não pude deixar de sentir alguma mágoa por saber que o rapaz não mais voltaria a descer naquela paragem nem veria mais a sua mãe. Passadas semanas, entrou ele pela porta do autocarro, sorridente, embora os seus olhos castanhos brilhassem com alguma mágoa.
Quisera despedir-se dos seus companheiros de viagem, contou-nos. Iria mudar de cidade com os avós, mas em breve voltaria. A mãe pedira-lhe para não chorar a sua morte, e como recebera uma educação religiosa, acreditava que ela estaria presente. Ainda hoje penso naquele menino e no tempo em que o via descer no hospital, sorridente, com um ramo de flores na mão.

26 de outubro de 2012

Pelo canto do olho as flores verdejantes baloiçam ao vento, os seus olhos descansam. O céu parece desfocado, e as nuvens desaparecem, formando uma paisagem simples.
Os ouvidos ensurdecem, esquecem a linguagem labial. Os ruídos e os maus olhares desvanecem-se. A boca curva-se perante a distância das palavras maldosas e o orgulho rema um barco que as leva para longe. Até a corrente estende uma mão oferecendo ajuda.
Os sentidos perdem-se e flutuam em plena liberdade.
As inseguranças tornam-se penas duma almofada. Esta é rasgada e elas voam.
Agora são impossíveis de apanhar.

4 de julho de 2012

A àgua estava turva, pequenas gotas salpicavam o lago molhando os nenúfares. O cheiro a terra era intenso, mas agradável.
Uma melodia quente soprava o ar. Os peixes haviam nadado para longe e o calor abafava o luar, que timidamente se escondera nas nuvens.
A chuva era fraca, mas o som que tocava envolvia a atmosfera em calor e em segurança.
As formigas recolheram-se nos formigueiros, e no nevoeiro transpareciam pensamentos dos corações mais tranquilos que habitavam debaixo daquela terra.
Os pássaros estavam fugidos, e no caminho, o vento era o destino, onde só as suas penas aconchegavam os seus corpos tão frágeis.
As pequenas gotas que salpicavam o lago ofereciam àquele lugar mãos cheias de solidão.


27 de junho de 2012


Ela era tão graciosa. A sua beleza interior sobressaia de todas as outras. Ela alcançava a perfeição, era o modelo de todas as outras que com ela dançavam. Sobressaía, pela destreza dos seus passos e pela alegria que transparecia do seu rosto. Naquele momento, olhei em volta. Naquela grande sala, uma única ideia passava na mente de quem a observava. Ela nascera para ser uma bailarina.

13 de junho de 2012

O rapaz olhou para a rosa, tocou em cada pétala onde as gotas da chuva haviam tocado. Fechou os olhos e continuou a vê-la, com igual nitidez, com igual beleza. Era perfeita. Talvez houvessem rosas ainda mais belas, mas, por alguma razão, aquela prendeu-lhe a atenção. Chorou de felicidade por ter encontrado, no meio daquele jardim tão grande, a flor que queria. Desenhou-a, mas não conseguiu igualar à original. Um dia, uma menina pediu-lhe para lhe dar uma flor, a mais bonita do mundo, prometendo-lhe que o amaria assim que o fizesse. E ele, sem hesitar, fascinado pela beleza da menina, chegou a casa, pegou na rosa e preparou-se para a entregar. Durante uma tarde, a menina encantou-se com a rosa, com aquele vermelho perfeito, sem um único defeito. Após uma hora a admirar, já não a quis. Atirou-a pela janela, caiu no passeio duma rua escura, com demasiada sombra, onde mais tarde uma carroça a pisou, desfazendo as suas pétalas vermelhas. O rapaz, de sorriso no rosto, encaminhava-se para casa da menina, quando viu a sua rosa. Reconheceu-a, mesmo depois de pisada e rasgada. Viu-a brilhar, ainda molhada com as lágrimas de alegria que ele próprio chorara. A sua rosa, que colhera e entregara cheio de amor a quem ele amava.




28 de março de 2012

Enquanto jovem, sempre se considerou um homem bom. Um homem preocupado, bastante atento e talvez um pouco ingénuo, por vezes. Sempre sorridente, cada frase que dizia era acompanhada por uma palavra simpática, e sincera, é claro. Estava sempre acompanhado, pudera, com aquela frescura e alegria não havia quem não tudo fizesse e dissesse para estar com ele e receber da sua atenção.
Porém, os anos passaram, e ele tornou-se um homem sério, contido com as amizades que fazia e com o que dizia. Pequenas rugas se formaram lentamente à roda dos seus grandes olhos azuis, e o seu corpo que costumara ser forte e robusto, enfraqueceu. Tornou-se mais calado, apenas falava quando julgava que o que iria dizer teria interesse para os restantes. Com o passar do tempo, tornou-se um homem angustiado pela solidão. Não casara, não tivera filhos, e, devido a ser pouco apreciador de espaços apinhados, não tinha amigos. Aqueles a quem ele podia chamar de família viviam no estrangeiro, parentes afastados, cada um com a sua vida.
Estava só. Estava só, e sabia-o.
Vivia num bairro, rodeado de pessoas, umas simpáticas, outras não tanto. Mas isso não o preocupava, nem tão pouco ocupava os seus pensamentos e reflexões. Não gostava de tecer opiniões sobre as pessoas sem as conhecer, e como não as conhecia, não tinha. Mas todas elas reparavam nele. Um pobre senhor. Amável, embora demasiado calado para a idade -  diriam umas. Desinteressante e pouco simpático - diriam outras. Mas ele não as ouvia, a sua audição, tal como os seus outros sentidos, já não era a mesma.

Ele estava só. E essa solidão era vivida por ele apenas, mas à sua volta permanecia um enorme grupo de pessoas. Os seus dias eram passados rodeados de conversas, de risos, de sorrisos, de relatos de viagens e de vidas.
Mas ele estava só. Ele caminhava, mas não sabia o caminho. Sentia a sua pele roçar com outras, sentia-se empurrado, diversas malas pesadas embatiam contra as suas pernas curtas, seguidas de um pedido de desculpas apressado. O homem caminhava, sem sequer levantar os olhos do chão. Caminhava, mas não para poupar gasolina, nem para chegar mais rapidamente à escola ou ao emprego.
Caminhava para passar o tempo, caminhando infinitamente numa estrada onde os seus passos de nada valiam. Eram apenas passos, e não eram eles que o fariam chegar mais rapidamente àquele grande portão, aquele portão que fazia a passagem para um mundo chamado felicidade, um portão que cada vez lhe parecia mais longínquo.